, mas nunca sairia do papel, como conta Esther Mucznik no seu novo livro A Grande Epopeia dos Judeus no Século XX, aqui em pré-publicação.
No mesmo Boletim de 1912, o principal patrocinador desta iniciativa, Wolf Terlö, judeu russo nascido em Odessa em 1877 e enólogo a viver em Portugal, conta que a ideia começou a germinar em 1905, em Coimbra, quando trabalhava para a Repartição Central de Agricultura. Terlö estivera ligado aos projectos vinícolas do barão Maurice de Hirsch na Palestina, tendo ido para Bordéus especializar -se em enologia, após o que terá sido contratado para trabalhar em Portugal.
Para além de uma loja na Rua de São Nicolau, em Lisboa, garbosamente intitulada Maison de Commerce Russe, onde vendia vinhos e produtos químicos, Terlö conheceu algumas personalidades no âmbito do seu trabalho em Coimbra, entre as quais o historiador Mendes dos Remédios, que, «conhecendo a minha qualidade de israelita russo, se dignavam longamente entreter -se comigo acerca do Judaísmo, da decadência científica e financeira de Portugal depois e em consequência da expulsão dos judeus, e da utilidade que haveria em os fazer voltar a este país».
Assim, pouco depois da proclamação da República, em Dezembro de 1910, Terlö entrou em contacto com José Relvas, ministro das Finanças do Governo Provisório, e propôs -lhe «a colonização por Israelitas das possessões portuguesas da África». A ideia terá tido um bom acolhimento e, em conjunto com Alfredo Bensaúde, mineralogista e professor no Instituto Industrial e Comercial, ambos apresentaram a ideia em primeiro lugar ao advogado José d’Almada, funcionário do Ministério das Colónias, e em seguida, já sob a forma de projecto-lei, a Manuel de Brito Camacho, director do jornal A Luta, talvez o mais influente periódico republicano, que se tornará o órgão oficioso do Partido Unionista. Brito Camacho era médico, e fora deputado e ministro do Fomento do Governo Provisório da República. Nestas funções entregara o projecto de reforma do Instituto Industrial e Comercial a Alfredo Bensaúde que dará origem ao Instituto Superior Técnico.
Wolf Terlö lançou uma vigorosa campanha de divulgação do projecto de colonização de Benguela em jornais influentes como O Século e A Capital. Também entrou em contacto com Norton de Matos, governador de Angola, e com Roque da Costa, secretário -geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assim como com membros da Comunidade Israelita, nomeadamente Salvador Levy e Jacob Levy Azancot, ambos com propriedades em África. A ideia foi fazendo o seu caminho e, em fins de Janeiro de 1912, um autor anónimo defendia, no jornal O Século, a colonização do Planalto de Benguela por judeus provenientes da Rússia: «(…) a colonização dos planaltos de Angola é uma necessidade imprescindível para a manutenção do nosso predomínio n’aquelas regiões e a melhor forma e a mais rápida, por não trazer despesas ao Estado, consiste em tratar de desviar para ali a corrente de emigrantes judeus russos que actualmente enriquecem a Turquia e a América».
A 23 de Janeiro, Terlö informa a ITO – Organização Territorialista Judaica – das suas diligências e a 1 de Fevereiro de 1912 é apresentado um projecto-lei pelo deputado Manuel Bravo à Câmara de Deputados, que o aprecia a 26 de Fevereiro. O projecto previa a concessão de 60 a 100 hectares de terrenos a imigrantes israelitas que, para poderem gozar das faculdades concedidas pela lei, teriam de se naturalizar portugueses.
Os interessados teriam de «fazer constar ao ministro das Colónias durante um prazo de dois anos que desejam naturalizar -se portugueses,a fim de gozarem de&nitivamente das vantagens estabelecidas nesta lei», nomeadamente a aquisição da propriedade exclusiva do seu terreno, após dez anos de cultivo ininterrupto, e isenção de impostos novos ou adicionais durante o prazo de 20 anos. Apreciado na generalidade, o projecto Bravo, do nome do seu autor, foi em seguida entregue a uma Comissão Colonial de sete membros, entre os quais Amílcar Ramada Curto, que será o seu relator, «jovem deputado, muito enérgico, de origem israelita que defendeu brilhantemente perante a câmara o projecto de que é entusiasta e muito partidário».
No seu livro A Invasão dos Judeus, o integralista Mário Saa dirá que, tal como grande parte dos deputados, Ramada Curto era «cristão -novo» e que até propusera, ao rabino Samuel Mucznik, que este fizesse «a educação dos seus filhos na sinagoga»... Através do controlo do constitucionalismo, assegura Saa, os judeus «foram tomando progressivamente as finanças, a medicina, o bacharelato em geral, e um belo dia, a 5 d’Outubro de 1910, assaltam definitivamente o Poder.» A começar pelo próprio Afonso Costa, «o hebreu» segundo o mesmo Mário Saa…
Unanimemente aprovado pela Comissão Colonial, o projecto passa à Comissão de Finanças, onde é aprovado também por unanimidade. No seu relatório no Boletim da Comunidade Israelita de Lisboa, Terlö escreve que a discussão na Câmara de Deputados se prolongou por sete sessões entre Maio e Junho de 1912, tendo sido unanimemente aprovado pelos deputados a 15 de Junho. Segundo João Medina, os debates no Parlamento são reveladores da «mentalidade colonialista da época», mas mostram também a forma como era analisado o papel dos judeus. Medina cita as palavras do deputado de Benguela, o indiano Caetano Gonçalves, defensor do projecto: «Dir -se -á (…) que o Judeu comerciante e avarento não contribui, com a sua fortuna e o seu trabalho, para o bem público.
Não é exacto. Na Rússia, o Judeu é principalmente trabalhador rural. Mas se por esse facto houvesse o risco de, ao cabo, certamente, de muitas dezenas de anos, a província de Angola proclamar a sua independência, Portugal pouco perderia e ganhariam imenso a humanidade e a civilização. Nós precisamos ser do nosso tempo. E o mundo não é monopólio de ninguém.» Por sua vez, Ramada Curto considera que a expulsão dos judeus no reinado de D. Manuel I foi a causa da decadência de Portugal, indo aqueles enriquecer a Holanda. Lembra, no entanto, que «essa raça conservou na Holanda o amor ao meu país de origem, ensinando aos seus filhos e conservando bem nítida a dedicação pelas coisas portuguesas. Por isso, essa raça trabalhadora só poderá trazer vantagens à colonização de Angola».
Apesar da existência de um debate muito aceso, a única oposição de cariz claramente anti -semita vem de António Campos Júnior, autor de romances populares. No Diário de Notícias de 29 de Julho de 1912, publica um artigo intitulado «Planaltos da Judeia», denunciando a tentativa de realização de uma «nova Judeia feita do espólio de um Portugal ingénuo». Previne dramaticamente que «águias negras voam gritando as suas cobiças por cima daquelas altitudes que as gentes de Israel, sem os nossos direitos, a nossa tradição, a nossa alma, o nosso sangue, nunca de coração devotado poderiam defender».
Antes mesmo da aprovação do projecto-lei, o órgão sionista Die Welt dera conta, nas suas páginas, das propostas portuguesas, o que motivou a vinda a Portugal de delegados da Suíça e da Rússia da ITO, assim como do próprio presidente Israel Zangwill. A imprensa portuguesa dedica bastante atenção ao acontecimento, sublinhando de uma forma geral as vantagens do projecto, nomeadamente as financeiras. Com efeito, a 28 de Maio de 1912, o jornal O Séculoconsiderava que, por muito pobres que fossem os judeus perseguidos da Rússia, deixariam inevitavelmente uma parte do seu capital durante a sua escala em Lisboa.
Por seu turno, Terlö, entrevistado pelo mesmo jornal a 5 de Junho de 1912, assegurava que 1000 famílias partiriam para os planaltos angolanos, para o que dispunham já de 1300 contos de réis. Afirmava também que se iria realizar uma conferência em Viena com o objectivo de reunir o máximo apoio &nanceiro para o plano de colonização. A conferência teve efectivamente lugar a 27 de Junho de 1912 e Terlö foi o relator do projecto, entretanto aprovado, com base em relatórios preparados por Pereira do Nascimento, chefe das missões de estudo ao longo de cinco anos no Planalto de Benguela.
A 2 de Agosto parte para o Lobito uma comissão designada pela ITO para estudar a situação dos planaltos angolanos, che&ada pelo professor John Walker Gregory. Durante cerca de três meses, a comissão percorreu uma região de «3000 milhas quadradas, num total de 1126 percorridas, das quais 340 milhas a pé»15, para além de se encontrar com diversas entidades primeiro em Lisboa, antes de embarcar, e depois em Benguela. A comissão regressou a Inglaterra a 17 de Outubro de 1912, mas o relatório só seria divulgado em Junho de 1913. Gregory considera positiva a colonização judaica, sublinhando o facto de a presença da ITO em Angola poder ser vista pelo Governo português como um reforço da sua própria soberania em Angola, nomeadamente face à cobiça de países estrangeiros. Também considerava que a terra angolana era superior à da Palestina para efeitos de colonização. Por seu turno, no prefácio ao relatório, Zangwill destaca outro aspecto a seu ver muito positivo: a «presença de sangue judeu entre os portugueses». Na sua opinião: «Todo o Portugal está subtilmente saturado de subconscientes simpatias raciais e essa combinação de judeus e portugueses para criar um novo centro de civilização em Angola é uma mistura mais natural do que qualquer outra.»
O projecto-lei só será discutido pelo Senado em Maio de 1913, sentindo -se, segundo Medina, «um vento hostil» ao longo do debate que dura até finais de Junho. As razões prendem -se essencialmente com o receio da instalação de um «Estado dentro doutro Estado», conforme já referira na Câmara o deputado Bernardino Roque, opositor do projecto, que interpretava como a concretização «da sua [dos judeus] velha aspiração, o ideal da sua nova Sião».
No geral, a simpatia é pouca, apesar de intervenções como a de Francisco Correia Lemos, lembrando a necessidade de reparar «um grande pecado, praticado por D. Manuel», ou de José Nunes da Mata, lembrando que «se o Senado der o seu voto à proposta de lei, presta um bom serviço à humanidade e à Pátria e pratica um acto de reparação para com muitos descendentes de israelitas que foram vítimas dos nossos antepassados». O projecto acaba, contudo, por ser aprovado pelo Senado a 29 de Junho de 1913, mas nunca passará do papel. O passo &nal obrigatório era a votação conjunta pelas duas câmaras mas, inexplicavelmente, isso nunca aconteceu, inviabilizando na prática o projecto. Receio de perda de soberania portuguesa, desconfiança e, sobretudo, o próprio desinteresse do Governo de Afonso Costa terão contribuído para este desfecho.
Mas não só. Nas vésperas da Primeira Grande Guerra, a própria ITO entrava em crise e muitos dos seus apoiantes abandonavam a organização a favor do sionismo palestiniano. O próprio Israel Zangwill, juntamente com Alfredo Bensaúde, concordou que o projecto angolano devia ser abandonado. Na verdade, para os judeus que durante 2000 anos oraram «Para o ano que vem em Jerusalém», Sião só poderia ser em Sião, ou seja, na Palestina do século X
Fonte:Da Redação com angonoticias.com
Reditado para:Noticias do Stop 2017